terça-feira, outubro 17, 2006

"Elogio ao Amor Puro"



















Este é um elogio justo, é também um sarcasmo elaborado. É uma dissertação sobre o rodopiar dos ponteiros onde o A.M. tão depressa se torna P.M. por culpa do próprio (Amor, essa palavra vil).
O Cinema tantas vezes lhe tentou dar sentido sob determinadas formas mas hoje fiquemos pelo plano das imagens e das mil palavras com que Miguel Esteves Cardoso nos brindou.
"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível.A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito.
Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas, da lavandaria.Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado.Os amantes tornaram-se sócios. Reunem-se, discutem problemas, tomam decisões.O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possí­vel.O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo, de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.Já ninguém se apaixona?Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilí­brio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alí­vio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores.O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo.O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes.Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.O nosso amor não é
para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princí­pio, não é um destino.O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida.A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difí­cil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste,mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não.Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."



segunda-feira, outubro 16, 2006

"Super toys last all summer long" (Brian Aldiss)


Este é o filme que consagra a estética do belo oriunda do mais profundo espaço de sentimento: o do amor entre dois seres: mãe e filho.
A acção decorre no campo eleito pelas máquinas, um futuro distante e incrivelmente obscuro. A mãe é um ser humano distante, o filho, esse é uma máquina construída para amar e capaz de surpreender.
A grande surpresa deste conto de fadas reside na visão que oferece do sentimento porque nos transporta para uma humanidade robótica carente de afectos e do belo sentido do amor.
Sem desprimor para outras obras de ficção cientifica, esta terá sido a melhor dos últimos anos ou não tivesse no seu âmago um elenco de luxo - os próprios Jude Law (Gigolo Joe) e Haley Osmont (David) são espantosos no controlo das não expressões, o argumento é de grande qualidade - um “peso pesado” de referências à metafísica.
Neste particular a presença de uma banda sonora com o contributo da riquíssima orquestra do compositor John Williams.
Artificial Intelligence mais não é do que uma história de fadas na segunda metade do século XXI, a história de recalcamentos psicológicos provocados pelo flagelo mundial do efeito estufa e pelo ballet comportamental das máquinas criadas pelo homem.
A sinopse revela um quadro de acção profundamente estético e demarcado pelo suspense que a todo o momento resvala nas duas horas de filme: ou quando o professor Hobby (William Hurt) decide dar mais um passo no mundo da robótica e cria o robot-criança que exprime o amor, ou quando Mónica (Frances O’ Connor) se interroga sobre a activação do seu filho – duas situações que têm em comum a reflexão do espectador em torno da decisão mais acertada em cada momento.
A chancela de Stanley Kubrick é revelada no tratamento dado ao conto de Brian Aldiss: “Super Toys last all summer long”, Kubrick deixou um legado absolutamente inesquecível e um contributo para a humanização do cinema.
O guião foi realizado pelo seu homólogo Spielberg a quem aquele terá dito:
“you´d be the best guy to direct this movie”.
A tagline trata um confronto entre duas inteligências: a inteligência artificial do comportamento das máquinas e, por outro lado, a inteligência do reino do sentimento acabando esta por prevalecer.
O filme tem esta vertente pedagógica importante para o observador médio.
De acordo com o cada vez maior despojo comercial actual, uma curiosidade interessante é a de que este filme foi distribuído nos EUA pela Warner Bros tendo na Europa havido uma participação da Dreamworks significando mais e melhor qualidade (como é sabido esta última tem vantagens ao nível da elaboração do material que nos chega para ser projectado na tela).
Artificial Intelligence tem muito de Brian Aldiss mas tem igualmente o poder do imaginário sensível de Kubrick, basta lembrar o genérico inicial com a voz do narrador e os planos plongé das ondas do mar, isto é tão somente um piscar de olho à introdução em Shinning (também este filme uma adaptação magistral do livro de Stephen King).
Esta obra prima chegou ao Director capaz de trazer um florescimento do trabalho escrito para que chegasse até nós uma obra humanizada (nesta ponte Spielberg foi mestre).

quinta-feira, outubro 12, 2006

- Bem que eu não me enganei, raça de ladrões -

-A Mãe - Curta metragem, fabricada por João Cesar Monteiro

A Mãe de João César Monteiro

“…O Português precisa de tomar consciência de que é vário. Porque se ele percorrer os seus grandes homens, todos eles se apresentam como uma variedade enorme.”

Agostinho da Silva – Esboço do Português –

Filmado no Natal de 1978 nas terras “longínquas” de Trás-os-Montes, a curta metragem “A Mãe” de João César Monteiro é mais uma vez, a prova de como ser português é fazer muito com o muito que esta condição de seres periféricos à grande Europa e ao pequeno mundo nos pode trazer.
Não quero fazer nestas linhas nenhuma análise cinematográfica do filme, não o saberia. Contudo o que o filme nos traz, nos seus breves 27 minutos, vai muito para alem da imagem e da estética de uma qualquer produção cinematográfica. As personagens amadoras (com uma genuinidade ingénua), a imagem “recauchutada” , turva e os diálogos, assumidamente populares são o fundo deste filme. Fabricado como diria o autor, ao invés de produzido, é por si um acto de amor para com todo este imaginário popular.

- Bem que eu não me enganei, raça de ladrões.
- Cale-se mulher do Diabo
- Hei-de me calar, quando prenderem o baraço ao pescoço daquele moinante,
meu pobre filho a trabalhar como um burro todo o ano .

Um dialogo simples mas cheio de vontades que antecede um homicídio, o começo de uma viagem num imaginário de um Portugal passado, mas não muito distante, onde as virtudes e os defeitos fazem o dia a dia de uma vida simples, sem exuberâncias e sem intrigas. O acto é a acção, a necessidade é a vontade. João César Monteiro, erudito, mas popular, vário por sinal, faz desta curta-metragem mais um registo de mais uma das formas de ser português.